África para crianças
Em um passeio pela África o escritor Alberto da Costa e Silva apresenta um continente rico e multifacetado ao público infanto-juvenil
POR DENISE MOTA
Revista Raça
Crianças e adolescentes brasileiros estão sendo convidados a viajar pela África. No itinerário, o primeiro ponto que os visitantes deixam para trás é o lugar-comum. O destino final é o coração do continente, de onde se tem visão privilegiada de sua melhor paisagem: a real. O passaporte para essa viagem não requer burocracia. Acaba de chegar às livrarias sob o nome de Um Passeio pela África (Nova Fronteira), escrito pelo africanista Alberto da Costa e Silva. Em sua obra, o poeta e diplomata apresenta a África contemporânea por meio da viagem de três garotos. "Não se caçam animais ferozes nem se procuram tesouros. Viaja-se e vê-se, simplesmente", diz o autor que conversou com Raça Brasil sobre esse e outros projetos, retratos de uma África e de um Brasil interconectados e fascinantes para grandes e pequenos.
Raça Brasil - Alguns dos desafios na aplicação da lei 10.639, de 2003, que institui o ensino da cultura afrobrasileira nas escolas é o escasso material didático disponível e o pouco conhecimento dos professores nessa temática. Um dos objetivos deste livro é contribuir para preencher essa lacuna?
Alberto da Costa e Silva - Não escrevi Um Passeio pela África para a sala de aula, mas, sim, para as horas de recreio. Espero, porém, que contribua para atiçar a curiosidade nos jovens pelo continente africano, pela diversidade de suas paisagens e pela riqueza de suas culturas. E para que descubram que na África não há só leões. A história da África chegou com grande atraso às nossas universidades, por isso a carência de conhecimento dos professores e de livros didáticos sobre a disciplina. Uns e outros começam a surgir. Entre os livros, menciono África e Brasil Africano, de Marina de Mello e Souza, e, para público diferente, Ancestrais, de Mary del Priore e Renato Pinto Venâncio.
A história da África chegou com atraso às universidades, por isso a carência de conhecimento sobre a disciplina
Que pontos do continente o senhor buscou enfatizar para o jovem leitor?
Fiz as minhas três personagens, Zezinha, Inácio e Gustavo, visitarem diferentes pontos da África Atlântica: o deserto, o sael, a savana, a floresta. E diversas cidades, com línguas e costumes diferentes. No meu livrinho, não há outras aventuras que não as da viagem.
Outro livro seu, A Enxada e a Lança, acaba de ganhar nova edição. Quais os principais equívocos que se perpetuam na visão que o brasileiro tem da África?
O de ver a África com os olhos de quem assiste a um filme de Tarzan. O de julgá-la pelo noticiário dos jornais, dos rádios e das televisões, para os quais a boa notícia é a má notícia. O grande público não se detém numa notícia sobre o nonagésimo aniversário de Dona Maria, cercada de filhos, netos e bisnetos, todos felizes, nem em áreas do continente africano sem guerras civis, sem epidemias e sem fome. O de tomar uma parte pelo todo e acreditar, por exemplo, que em toda a África, e não apenas numa pequenina parte dela, o Iorubo, se venera os orixás. O negro brasileiro e a sua contribuição à formação do Brasil têm sido ampla e intensamente estudados, desde, sobretudo, a quarta década do século 20. Não há nada de comparável, em volume e qualidade, em relação aos italianos, espanhóis, alemães e até mesmo aos portugueses depois da Independência. A bibliografia brasileira sobre a escravidão, sobre o escravo, suas revoltas e as religiões e costumes de origem africana é extraordinariamente rica. Não cabe na minha casa. Todo esse saber acumulado não passou ainda para a escola, para o livro didático, onde é raro ler-se algo sobre as técnicas de produção que os africanos trouxeram para o Brasil, na agricultura, na pecuária, na mineração e na metalurgia, por exemplo. O escravo não aparece como civilizador, mas como simples mão-de-obra.
Em entrevista à esta revista, o escritor nigeriano Uzodinma Iweala comentou que o olhar ocidental lamentavelmente só repara na África da guerra, da corrupção, da fome. O senhor foi embaixador do Brasil na Nigéria e no Benim, e conhece mais de 15 países africanos. Que análise faz da África hoje?
Boa parte do continente andou por descaminhos nas últimas décadas. Após a euforia das independências, quando um futuro harmonioso e próspero da África parecia estar na manhã seguinte de seus povos, vários países caíram nas mãos de governos militares e passaram a ser pilhados pelos grupos que tomaram o poder. A burocracia governamental e o egoísmo das cidades empobreceram o campo, danaram as antigas estruturas produtivas e sociais, como se a África estivesse dando combate a si própria. Mas, apesar disso, e não só naqueles países que escaparam dessa sina, as pessoas continuaram a cultivar as suas glebas, a tanger o seu gado, a ir à escola e à universidade, a fazer música, a escrever livros, a jogar futebol, a produzir e a criar. Há indícios claros de que a África, sem embargo de tantas mazelas que a afligem, está entrando num novo período de crescimento e, mais do que isso, numa renascença de seus valores.
Em A Enxada e a Lança, o senhor restabelece o modo de vida africano antes da chegada dos portugueses. Na escola brasileira, a África surge quando aparece a escravidão negra. Em sua opinião, essa noção de África como "continente de escravos" é uma das bases do racismo no país?
A Europa e a Ásia foram também "continentes de escravos", não só a África e as Américas. A escravidão, nas suas mais diversas formas, mas todas elas violentas e desumanizadoras, existiu em quase todas as culturas. Nas Américas, porém, o escravo foi identificado com o negro, e essa é uma das fontes do racismo. O negro era escravo porque era um homem inferior ou, quando menos, bárbaro e sem cultura. O estudo da história da África contribui para desmoralizar esses conceitos, ao mostrar que o continente antes dos europeus já possuía estruturas políticas complexas, arte de altíssima qualidade, sistemas de pensamento e modos de vida que não ficavam atrás dos da Europa, se é que me posso permitir esse tipo de comparação.
O senhor concorda com a lei que determina o ensino da cultura afrobrasileira?
Claro que sim. Mas com o cuidado para que não se isole o estudo da África nos cursos elementar e médio. Não vejo com bons olhos, por exemplo, que se crie nesses cursos uma cadeira de história da África ou de estudos afrobrasileiros. Nada de guetos culturais. Penso que, fora da universidade, se deve estudar a história da África, como de resto a história da Europa, dentro da disciplina História Universal ou História Geral. Mas que a ela se dê relevo. Que se estude o obá do Benim do mesmo modo que o imperador Carlos V, e que se dê a Usuman dan Fodio e à sua guerra santa na Hauçalândia espaço não muito menor ao concedido a Napoleão e suas guerras européias, uma vez que um e outro influenciaram, na mesma época, a vida brasileira.
E quanto às cotas?
Sou a favor, ainda que cônscio dos perigos que apresenta. Creio, contudo, que mais vale correr esses riscos do que deixar que continue sem mudança uma situação que compromete o nosso futuro, a muitos humilha e a todos magoa.
O senhor morou vários anos na África sendo embaixador de um país de grande população negra. Sentiu-se em algum momento alvo de preconceito ou protagonizou algum episódio específico pelo fato de ser branco?
Sim, mais de uma vez. Mas recebi também demonstrações de afeto e são estas as que guardo.
domingo, 27 de setembro de 2009
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